O comportamento dos médicos em relação aos seus próprios erros está mudando. Até algum tempo atrás, com medo de sofrer processos e ter a reputação manchada por uma acusação de barbeiragem, grande parte deles preferia esconder dos pacientes suas eventuais falhas. Isso só contribuía para complicar a questão. Desinformados a respeito de problemas durante a cirurgia, muitos pacientes só descobriam que tinham sido vítimas de erro mais tarde, em razão de complicações pós-operatórias. Os próprios conselhos regionais de medicina eram usados como escudo para proteger os médicos acusados de erro, o que frequentemente lhes valeu a pejorativa denominação de "máfia de branco". Hoje, isso ainda acontece, mas há boas notícias na área.
Para a maioria das pessoas, erro médico é sinônimo de negligência ou irresponsabilidade de maus profissionais. Inúmeras histórias escabrosas que aparecem no noticiário contribuem para reforçar essa visão. É a possibilidade de errar, ou acertar, que faz da espécie humana a única dotada de livre-arbítrio, a capacidade de escolher entre ideias, caminhos, soluções e alternativas diferentes. É também esse mecanismo que faz as pessoas melhorarem com o aprendizado e o acúmulo de novas experiências. Sem a perspectiva do erro, seríamos todos exatamente iguais, homens e mulheres aborrecidamente infalíveis e previsíveis.
Existe, no entanto, o profissional que erra e procede corretamente depois e o médico que erra e se mantém teimosamente no erro. No primeiro caso estão médicos que falham mas assumem os deslizes e os expõem francamente aos pacientes. No segundo, os que erram por negligência ou falta de humildade para reconhecer que não estão preparados para fazer determinadas cirurgias ou tratamentos. E, pior: procuram esconder os erros com atitudes desonestas em relação aos pacientes. A maior parte das denúncias de erro médico que se avolumam nos conselhos regionais e nos tribunais de Justiça tem uma história de mau relacionamento entre médico e paciente agravando a questão do erro. Muitos processos poderiam ser evitados com um diálogo franco e a continuidade do tratamento. Sabendo disso, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro criou uma Comissão de Conciliação. Antes de dar entrada com a denúncia, a comissão coloca o paciente frente a frente com o médico. O profissional é obrigado a explicar, em linguagem didática, o que houve durante determinada cirurgia ou tratamento. Nos casos mais simples, os pacientes contentam-se com um pedido formal de desculpas por parte do médico. Nos outros, mais complicados, é aberto um processo no CRM.
No Brasil
No Brasil, o que contribui para o erro e a negligência são a má formação dos médicos e as condições de trabalho na maioria dos hospitais. Dos 9.000 profissionais formados todo ano pelas 85 escolas de medicina do país, apenas 60% conseguem vaga para fazer residência. "Mesmo quem se formou na melhor faculdade de medicina do Brasil não está pronto para trabalhar sem dois anos de residência", afirma Júlio Cézar Gomes, secretário do CFM. "Esses 40% que chegam ao mercado de trabalho sem a formação completa são um perigo." Outro problema são as precárias instalações dos postos de atendimento. "Em hospitais muito grandes, a situação força uma banalização da morte", diz o professor Sérgio Mies. "Isso leva à negligência. É essencial que um médico nunca encare a morte como algo banal." Além das más condições de trabalho, a certeza da impunidade é outro fator que favorece os erros. Nos hospitais públicos, quando o médico erra, geralmente o processo corre contra a União, o Estado ou o município. Em raríssimos casos, acusa-se diretamente o profissional que cometeu a falha. Essas entidades públicas, e impessoais, pagam as indenizações, quando são condenadas, mas quase nunca se preocupam em punir os responsáveis pelo erro. "Ninguém fica sabendo nem mesmo quem é o médico envolvido", diz Marcos Vianna. Durante os quatro anos em que ele dirigiu o Instituto Fernandes Figueira, no Rio de Janeiro, maternidade de referência nacional, o hospital pagou quatro indenizações por erros cometidos por médicos que nem trabalhavam mais lá. Várias vezes Marcos Vianna tentou abrir sindicância interna para apurar os erros, mas foi em vão. "Convocamos comissões de médicos especialistas, mas o corporativismo correu solto", queixa-se Vianna. "Ninguém queria ouvir falar em negligência."
O aumento do número de processos contra médicos no Brasil deve-se a uma mudança de comportamento da sociedade. Até alguns anos atrás, os médicos eram vistos como profissionais em quem se devia depositar uma confiança cega, o que os tornava praticamente imunes à acusação de erro. Isso está mudando, graças à consciência dos pacientes de que eles são prestadores de serviços, dos quais se devem cobrar qualidade e respeito, como em qualquer outra área.
Quando é julgado culpado por um CRM, um médico pode receber uma advertência reservada, uma censura pública, uma suspensão por trinta dias. Nos casos mais graves, tem o registro profissional cassado. Nos processos que chegam à Justiça comum, as vítimas buscam indenizações em dinheiro e, em tese, as chances de o médico ser punido são maiores.
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